Em
outubro, mês dedicado à conscientização sobre o câncer de mama, através da
campanha Outubro Rosa, é importante refletirmos sobre como o Direito desempenha
um papel fundamental no contexto do direito à saúde, especialmente quando se
trata do combate ao câncer. No Brasil, temos observado melhorias recentes na
legislação relacionada ao câncer, como o Estatuto da Pessoa com Câncer (Lei
14.238/2021). No entanto, desafios persistentes, como a necessidade de alinhar
a legislação com os avanços da medicina oncológica e as disparidades no acesso
a tratamentos entre a saúde pública e a saúde suplementar, continuam a ser
questões relevantes.
Para
entender essa complexa relação entre o Direito e a Oncologia, entrevistamos a
especialista Ana Thereza Meirelles Araújo, vice-presidente da Regional Bahia da
Sociedade Brasileira de Bioética e professora na UNEB e na Faculdade Baiana de
Direito, onde coordena a Pós-graduação em Direito Médico, da Saúde e Bioética.
Ela discute como a legislação está se adaptando para acomodar as novas
possibilidades terapêuticas em Oncologia e como os juristas e profissionais do
Direito estão buscando compreender de maneira mais profunda essa complexa
disciplina médica.
1.
Como podemos, hoje, apontar a importante relação entre o Direito e a Oncologia,
considerando a premissa do acesso à saúde?
Confirmando
a ideia de que o Direito tem demandado cada vez mais um estudo aprofundado, em
suas distintas áreas de atuação e pesquisa, podemos pensar que o direito da
saúde é um segmento especial, que lida, de frente, com a vida, a sobrevivência
e as integridades física e psíquica do ser humano, assim como a área médica da
Oncologia. A relação entre o Direito e a Oncologia está justamente nessa
característica especial. Novas possibilidades terapêuticas oncológicas, por
vezes, demandam, para que se tornem efetivas e distribuídas de maneira mais
justa, tanto mudanças na legislação, quanto conhecimento para atuação
qualificada dos juristas, como advogados, como gestores ou como servidores
públicos.
2.
Dentro do direito à saúde, as demandas judiciais oncológicas têm
especificidade? O cenário atual dos novos tratamentos e possibilidades
terapêuticas em Oncologia também deve interessar ao profissional do Direito?
As
demandas judiciais oncológicas têm especificidade porque os recursos e as
alternativas terapêuticas aumentaram. A compreensão do câncer como uma doença
que envolve muitos fatores e se revela de maneira singular em cada paciente é
um pressuposto fundamental para que se possa alcançar as especificidades que
podem justificar uma demanda judicial em Oncologia. Hoje, o acesso aos recursos
da oncogenética, por exemplo, por meio de testes preditivos, pode ser essencial
para um paciente já diagnosticado ou não com câncer. Acrescente-se, também, que
a medicina de precisão, pautada na identificação de terapias ou protocolos
específicos de acordo com cada caso oncológico, tem se tornado elementar ao
tratamento da doença.
3. O
estado atual da legislação sobre câncer no Brasil, o que inclui o Estatuto da
Pessoa com Câncer (Lei 14.238/2021), está em compasso com a medicina oncológica
hoje?
Se
pensarmos nos últimos anos, houve uma melhora importante no cenário legal no
Brasil. O desafio que persiste está no fato de que a evolução da medicina
oncológica não é acompanhada paralelamente pelo Direito. Esse não
acompanhamento se revela de distintas formas, como na morosidade do processo
legislativo ordinário, que demora para criar leis ou para atualizá-las, na
dificuldade de otimizar o processo de regulamentação dos novos fármacos, e, em
especial, na necessidade de que a doença oncológica tenha disciplina
emergencial e prioritária, seja pelo Estado, por meio de políticas públicas de
prevenção e de tratamento especializado, seja pela saúde suplementar, onde muitas
demandas judiciais têm ocorrido.
Sabemos
que o Estatuto da Pessoa com Câncer?confirmou direitos e garantias fundamentais
de pacientes oncológicos, lógica interpretativa já embasada na Constituição
Federal. A lei trouxe previsão detalhada que deve fundamentar a cobertura de
alternativas terapêuticas pelas saúdes pública e suplementar, protagonizando o
diagnóstico precoce e a possibilidade de prevenção do câncer, além de confirmar
a importância da medicina de precisão, estruturada numa visão mais personalizada
do tratamento.
4.
No que tange aos dois setores, saúde pública e saúde suplementar, ainda temos
diferenças importantes quanto ao acesso aos recursos necessários para
tratamentos de doenças oncológicas? Quais?
Temos.
Ainda há diferenças importantes. Hoje, a predição e a precisão são elementos
centrais para que se possa antecipar precocemente a manifestação da doença e
tratá-la de maneira correta, considerando informações que singularizam o câncer
diagnosticado e o paciente. Sem prejuízo de que o cenário também não é ideal no
âmbito da saúde suplementar, sabemos que os recursos da predição (revelados
pela oncogenética) e da precisão (por meio das alternativas e terapias
especializadas) não estão adequadamente disponíveis aos pacientes do SUS, sistema
legalmente alicerçado nos princípios da universalidade de acesso e da
integralidade da assistência.
5. O
Direito contribui ou se relaciona de que maneira com a esfera da prevenção da
doença?
Primeiramente,
devemos pensar que cabe ao Estado compreender a importância de executar
políticas públicas efetivas sobre a prevenção e o tratamento do câncer. A
educação em saúde, por meio de esclarecimentos que vão do incentivo a hábitos
saudáveis de vida à formação de uma consciência sobre a necessidade de consultas
médicas rotineiras, hoje, é cada vez mais relevante para a sociedade. Assim, o
protagonismo do ideal de prevenção deve ser refletido pela busca dessa
educação, em escolas, em universidades e no âmbito das mídias em geral.
Atualmente, estudos econômicos já revelaram que é necessário avaliar, em larga
escala, no âmbito do câncer, o potencial impacto do que são apontados como
comportamentos de prevenção, recursos de predição e alternativas da medicina de
precisão diante dos custos da doença.
6. É
possível falar, de alguma maneira, em responsabilidades social e civil quando
se pensa em câncer?
Entendo
que a doença demanda atenção e responsabilidade social. É necessário lutar pela
consciência da possibilidade de prevenção e pelo acesso igualitário aos
múltiplos recursos em prol dos distintos tratamentos. Estamos num mês em que há
uma importante mobilização social para a consciência e a prevenção, mas também
é imprescindível registrar que a atenção não deve ser descontinuada. A educação
em saúde perpassa por essa consciência contínua. Juridicamente, sabemos que o
panorama judicial das demandas oncológicas aponta para possíveis
responsabilidades, seja pela não cobertura de terapias, cirurgias, exames e
fármacos necessários ou pela demora que agrava e contribui para o
constrangimento do paciente e/ou piora do quadro clínico. Na área do direito à
saúde do paciente oncológico, continuemos a pensar que a evolução legal possa
permitir a diminuição de demandas judiciais, seja na saúde suplementar ou no
SUS, para que o acesso às terapias sempre ocorra de forma natural, a partir da
necessidade de cada tipo de câncer e de cada paciente, bem como pautado na
indicação terapêutica precisa do médico especializado.
Sobre
Ana Thereza Meirelles Araújo
Pós-Doutora
em Medicina e Saúde pelo Programa de Pós-graduação em Medicina e Saúde da UFBA.
Doutora em Relações Sociais e Novos Direitos pelo Programa de Pós-graduação em
Direito da UFBA. Professora da UNEB, do PPGD-UCSAL e da Faculdade Baiana de
Direito. Coordenadora da Pós-graduação em Direito Médico, da Saúde e Bioética
da Faculdade Baiana de Direito. Vice-presidente da Regional Bahia da Sociedade
Brasileira de Bioética.
Nenhum comentário:
Postar um comentário