O tema
da XV Bienal Internacional do Livro do Ceará, “Das fogueiras ao fogo das
palavras: mulheres, resistência e literatura”, traça uma conexão clara entre a
existência feminina e a resistência. Poucas vidas encarnam tão bem essa conexão
quanto a vida das travestis brasileiras, um grupo extremamente marginalizado no
país que mais mata sua população LGBTQIA+. Dessa forma, é de suma centralidade
para a Bienal o evento ocorrido esta terça, dia 8, às 19h, nos palcos da Arena
Bece: uma edição especial do Programa Transver o Mundo, intitulada “Verónica
Valenttino: Transcendendo Fronteiras”, com participação de Verónica e mediação
de Dediane Souza.
Verónica
e Dediane se consideram “produto dos movimentos sociais. Do movimento negro,
dos movimentos LGBTQIA+, (...) fruto das lutas coletivas”. A trajetória delas
se cruzou pela primeira vez na graduação de teatro de Verónica pelo Instituto
Federal do Ceará (na época Cefet). Criada por mãe viúva em ambiente de igreja
evangélica, a graduação de teatro foi um primeiro momento de mudança. “Eu me
encontrei dentro do teatro, dentro da arte, que eu acho que é o lugar onde eu
vi a possibilidade de poder dar os meus berros, os meus gritos, poder organizar
minha raiva, ir trabalhando na reorganização da minha inquietude. E o Cefet foi
um grande divisor de águas na minha vida, porque foi lá onde os meus olhos se
abriram e eu pude enxergar o outro, de fato, que me levou ao conhecimento da
minha ancestralidade e da minha transcestralidade. Até então, eu não me
colocava nesse lugar de travesti, embora hoje eu perceba que a gente sempre
foi, a gente apenas deu ouvido por muito tempo sobre o que os outros falavam
sobre nossos corpos”.
Verónica
e seus amigos do teatro do Cefet fundaram o coletivo “As Travestidas",
trazendo suas vivências enquanto travestis para os palcos. “É surreal, é muito
louco eu olhar pra trás e poder ter vivido esse momento bonito que é a nossa
saída para botar a cara no sol. A gente sair pro dia, poder adentrar numa
faculdade, poder adentrar num teatro, no palco do teatro José de Alencar, que
até então era um palco que só via a classe burguesa cearense, e ir nos grandes
espetáculos globais. E lotar aquele teatro com travestis no palco e na plateia
foi muito fundamental. A partir disso nasce a Verónica, eu me reconecto, eu me
reconheço como Verónica, e a partir disso eu sou movida a essa busca por uma
travessia, essa minha curiosidade de saber quem eu sou, de onde eu vim, o que
tenho pela frente, essa coragem de adentrar nesse rio”.
Essa
“saída pro dia” das travestis da geração de Verónica e Dediane, e a coragem
delas de adentrar no rio, não trouxe apenas elas para a luz do sol, mas outras
“trans ancestrais” de suma importância para a história brasileira. Depois de
uma longa carreira artística, passando do curso de Teatro para os palcos do
José de Alencar, de Acopiara no Centro-Sul do Ceará para a Virada Cultural de
São Paulo com a banda de punk rock Verónica Decide Morrer, o reconhecimento
nacional veio em 2023, com o papel principal no musical teatral “Brenda Lee e o
Palácio das Princesas”, com o qual conquistou o Prêmio Shell de Melhor Atriz e
o Prêmio Bibi Ferreira de Melhor Atriz em Musicais.
Na
peça, Verónica interpreta Brenda Lee, travesti militante dos direitos LGBTQIA+,
que no auge da crise da AIDS, transformou sua casa em hospital para acolher as
travestis soropositivas que eram rejeitadas pelos hospitais tradicionais. “Eu
tô falando ela mesma, tá, gente? De salto, com saca de cimento nas costas, sem
engenheiro, só fazendo puxadinho, quebrando parede, vai fazendo. Essas são as
nossas ancestrais”, comentou.
Verónica
se mostra orgulhosa de fazer parte de uma geração que consegue ocupar espaços
mais nobres, como os palcos do teatro e da Bienal, mas dando muita reverência
às gerações que vieram antes. “Que lugar eu devo ocupar aqui, qual é o meu
lugar no mundo? E Brenda traz isso, essa consciência da gente olhar pra quem
veio antes, abriu as portas, olhar pra quem abriu os caminhos, abriu as portas,
pra hoje a gente estar aqui. E louvá-las, e honrá-las, através do que a gente
faz, através da tua [Dediane] literatura, do teu ativismo, da minha música, da
minha arte. É o mínimo que a gente pode fazer, porque é natural, e isso é a
travessia seguindo”.
A Bienal
Internacional do Livro do Ceará é uma realização do Ministério da Cultura
(MinC) e do Governo do Ceará, por meio da Secretaria da Cultura (Secult), em
parceria com o Instituto Dragão do Mar (IDM), via Lei Rouanet de Incentivo à
Cultura. O evento conta com o patrocínio do Banco do Nordeste, Rede Itaú,
Cagece e Cegás.
Serviço:
Bienal
Internacional do Livro do Ceará
Quando:
4 a 13 de abril, das 9h às 22h
Onde:
Centro de Eventos do Ceará – Avenida Washington Soares
Gratuito
e aberto ao público
Programação
no site: https://bienaldolivro.cultura.ce.gov.br
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